À procura do "Pote de Ouro" com Shane MacGowan

Há qualquer coisa de decadência pegajosa à vista de quem assiste, um certa volúpia pela decomposição do folclorista punk, mas também a imagem quase naif do vulto popular que permanece misteriosamente agarrado à vida. Como se a dança de garrafas fosse ao mesmo tempo veneno mortal e elixir da eternidade, combustível para uma brincadeira com o fogo tão perigosa quando indispensável para contar a história e conservar a lenda.
O tronco prostrado na cadeira é o de Shane MacGowan (1957-2023), com a cabeça pendente, a ameaçar descolar-se do pescoço, o viço que se desmembra em cada pausa no discurso, a mão trémula de pint (mais uma) na mão, o olhar vago e o riso trocista de puto charila que rivalizaria com o estilo de Muttley. Podemos dizer que os seus 65 anos foram uma corrida louca. Só Deus sabe se o vocalista e figura de proa dos irlandeses The Pogues terá visto o arco-íris no final do sprint, mas com ele sabemos que achámos o “Pote de Ouro”.
[O trailer de “Crock of Gold: A Few Rounds with Shane MacGowan”, na versão original:]
O britânico Julian Temple escreve, realiza e serve com dois dedos de espuma “Nos copos com Shane MacGowan”, que se estreia nas salas de cinema esta quinta-feira, para duas horas em registo intimista sobre a vida, a obra e, bom, dificilmente sobre a ressaca, porque o músico que começou a beber aos 6 anos fez questão de manter o ritmo de ingestão prego a fundo, sem grandes intervalos para dolorosos arrependimentos — antes algumas trips maradas, depressões, afastamentos da banda dado o estado impróprio para consumo, e assistir a um concerto dos Sex Pistols acabadinho de sair de mais um internamento desintoxicante falhado.
A longa-metragem é produzida por Johnny Depp, amigo de longa data de MacGowan, que se junta ao elenco de parceiros e ilustres que desfilam no ecrã, encostados a balcões, entre mais uma rodada com o cúmplice de aventuras, como Bobbie Gilespie, Nick Cave ou Gerry Adams, antigo líder do partido nacionalista republicano irlandês, o Sinn Féin. Foi graças a eles que Temple, pioneiro dos videoclips e autor de documentários como “The Filth & The Fury” ou “Joe Strummer: The Future is Unwritten”, conseguiu vencer as reservas do biografado e as primeiras incursões à Irlanda, em 2019, infrutíferas. “Fazer um filme sobre Shane MacGowan não é tarefa fácil. O mais próximo em que consigo pensar, é um daqueles filmes de David Attenborough. Preparam-se as armadilhas com a câmara, espera-se e espera-se, na esperança de que um dia o leopardo das neves as acione”, admitiu o cineasta na promoção do documentário, um projeto lançado depois do sucesso do concerto que celebrou os 60 anos de Shane, em 15 de janeiro de 2018, no National Concert Hall, em Dublin.

Shane no concerto de homenagem pelos seus 60 anos
“Pote de Ouro – Mais uma Rodada com Shane MacGowan” segue o homem no seu caleidoscópio e traça ainda o retrato de um tempo e de um modo marcado pelo conflito e pelo escape, pela religião e pela rebelião, pela mágoa e pela redenção. Desde logo numa Irlanda marcada pela fome, pela emigração, e pelas memórias de infância em Tipperary. Depois pelos primeiros anos em Londres, a explosão punk em Camden, as origens do grupo, a engenharia do culto e o impacto das canções na cultura britânica — “Deus olhou para aquele rapazinho irlandês e pensou ‘vou usá-lo para salvar a música irlandesa’“, partilha o ungido. Está tudo gravado na alma celta e nas palavras do líder profano, que não se perde em terríveis minudências. “As letras são sempre sobre lutar, beber, morrer, viver, as coisas que toda a gente faz.”

“Irascível, intratável, enfurecedor, fascinante, chocante, exasperante, belicoso, comatoso, rabugento, cadavérico, impossível, imparável”. Um sortido de adjetivos usados por Temple, que conseguiu concluir o documentário antes da morte de Shane
O documentário, vencedor do prémio especial do júri no Festival de Cinema de San Sebastián, contou ainda com a cooperação e subtileza dos métodos de elementos da família, para facilitar acessos ao protagonista, aceder a material inédito, desfiar memórias e anestesiar veredictos. Não é que Shane seja um beberrão inveterado, garante a irmã Siobhan, acontece que para ele a vida sem álcool não tem a mesma graça. “Tocamos melhor quando estamos sóbrios, mas não é tão divertido”, resume o próprio, sem rodeios. E, para que conste, nem ébrio conseguiriam fazê-lo emborcar hoje pela goela “Fairytale of New York”, provavelmente o hit de maior sucesso comercial da banda fundada em 1982 por MacGowan, Spider Stacyand e Jem Finer. Nada que nos imponha abstinência, mesmo que ainda faltem seis meses para o Natal.
observador